Memória e história: Pedro Velho em Dissertação.

Mestre MARCOS TAVARES DA FONSECA.
MEMÓRIA E HISTÓRIA DA ANTIGA VILA DE CUITEZEIRAS
PEDRO VELHO/RN (1861 a 1936)
João Pessoa, 2006.

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Paraíba, em cumprimento às exigências para obtenção do título de Mestre em Geografia, sob orientação da Profª Drª Maria de Fátima Ferreira Rodrigues.
RESUMO
Este trabalho tem por finalidade resgatar a história da Vila de Cuitezeiras, da sua origem em 1861 à consolidação da cidade de Pedro Velho, em 1936, tendo a memória como papel fundamental na recuperação da vida social. Escrever essa história demandou um resgate da memória do lugar e sobre a fundação do município de Pedro Velho a partir de um viés teórico e de cunho etnográfico. Apoiei-me em autores como Pollak (1989 e 1992),  Montenegro (2003), Frochtengarten (2005), Le Goff (1994), Bosi (1994), Halbwachs (1990), dentre outros. Além disso, a história da Vila de Cuitezeiras foi recuperada a partir das literaturas de Lima (1997), Medeiros (1992), Cascudo (1992, 1955, 1968, 1971), dentre outros. Também fiz uso de relatos orais em entrevistas com narradores portadores da memória do lugar: os senhores Daniel Galvão, Jaldemar Nunes, João Alberto, Carlos Alberto Soares de Carvalho, Cledenilson Valdevino Moreira e João Hortêncio Sobrinho. Apresento também uma descrição do município. Procurei conceituar a memória e as relações existentes entre algumas de suas categorias. Estabeleci relações entre tradição e memória enfocando as categorias de tempo, a partir dos relatos; das lembranças e da cultura popular no contexto da antiga Vila. Trabalhei a memória do lugar, fazendo relações com os fatos marcantes de sua história: a formação da Vila Nova de Cuitezeiras e a Consolidação da Cidade de Pedro Velho. Nas considerações finais apresento uma análise dos fatos que marcaram a história da Vila de Cuitezeiras a partir das vivências e a vida na nova Vila após a enchente do rio Curimataú, consolidando os primeiros alicerces da nova cidade. Portanto, exponho a importância do resgate da memória para a sociedade pedrovelhense e para a construção de um trabalho científico.


Lembrar para Contar: da caracterização à memória do Lugar
Pedro Velho, apesar de Centenária continua uma Vila Nova.
Memória e origem da Vila de Cuitezeiras
A atual denominação do Município – Pedro Velho – remete a fatos históricos mais recentes e não aos primórdios da história do lugar, pois a denominação inicial atribuída à atual cidade pelos primeiros habitantes foi Vila de Cuitezeiras. Esse topônimo origina-se e remonta, segundo registros da memória, à terceira década do século XVII. Posteriormente, foi registrado como município oficialmente no ano de 1890 pelo artigo 1º da Lei Orgânica de 03 de abril de 1890, que o estabeleceu como entidade autônoma e básica da Federação, com garantia de dignidade aos seus moradores.

A Memória e o pertencimento ao lugar
As evidências levam a crer que os habitantes de Pedro Velho partilham uma memória do lugar, que os liga à construção histórica do Engenho Cunhaú e à influência política, econômica e social dos Albuquerque Maranhão no Estado do Rio Grande do Norte. Cientes de tal fato chegam a afirmar que não existiria essa cidade se o Engenho Cunhaú ali não se encontrasse. O sentimento de pertencimento é perceptível no âmbito do resgate histórico do Engenho Cunhaú.
Essa história começa a ser registrada, no âmbito desta pesquisa, por volta do início do século XVIII, quando o Rio Grande já se destacava como um importante centro de criação de gado e a pecuária, como uma importante atividade socioeconômica, ajudou a constituir o núcleo urbano do lugar, sendo esse formado, em sua maioria, por vaqueiros e lavradores. A agricultura e a pecuária impulsionaram a economia da região e nessas atividades destacaram-se produtos como o algodão, no agreste, e a cana-de-açúcar, no litoral.
Nessa época, o Engenho Cunhaú se destacava por sua importância como o maior produtor de açúcar, fato também que se deu em quase todas as épocas. Nesse contexto, Carlos Alberto Soares de Carvalho enfatiza a importância do Engenho Cunhaú no processo de produção açucareira e destaca ainda que: um dos pontos mais importantes do povoamento do Rio Grande do Norte foi o vale do Cunhaú, não só porque aí se localizou a primeira concessão de terras feitas aos filhos de Jerônimo de Albuquerque, mas porque lá também se constituiu o primeiro engenho de açúcar. 
O vale do Cunhaú era o ponto obrigatório da primeira etapa dos caminhantes das expedições do vale da Paraíba, de Mamanguape, da Baía da Traição, que transpunham a fronteira Norteriograndense. Apoiando-se nesse relato, vejo que a Vila de Cuitezeiras se constituiu como conseqüência do movimento econômico de expansão das lavouras da cana-de-açúcar do Engenho Cunhaú e do povoamento inicial da região.



Vista panorâmica de Pedro Velho - RN

Nesse contexto, foi decisiva a participação da família Albuquerque Maranhão, proprietária do Engenho. Sobre esse tema, Lima (1997, p. 31) comenta: Um dos fatores relativos a Pedro Velho é o processo de ocupação da área do Município, que pode ser enquadrada dentro da lógica que marca a ocupação de todo o território nordestino desde o início da sua colonização. O processo, como nas economias capitalistas em geral, tem sua essência na intensa concentração fundiária. (...) De início, esse processo foi sendo feito com acesso à implantação da cultura canavieira no vale úmido do litoral, especificamente no vale do Cunhaú.
Observa-se, por conseguinte, que o território do município de Pedro Velho (RN), anteriormente denominado Vila de Cuitezeiras e, depois, Vila Nova de Cuitezeiras, antes de caminhar rumo à sua formação como cidade, se destacava como área pertencente ao Engenho Cunhaú, tendo como atividade dominante o cultivo da cana-de-açúcar. Através dos relatos referentes à importância do Engenho Cunhaú quanto à fundação da Vila de Cuitezeiras, percebe-se uma identificação dos narradores com a terra, revelada em palavras, frases e gestos, que anunciam o sentimento de pertencimento à comunidade e à sua história. Trata-se mesmo da relação da memória coletiva com as memórias individuais dos narradores.

Cuités

Memória e Identidade Social do Engenho e da antiga Vila.
Sabemos que a identidade social está intrinsecamente ligada à memória e ao passado de um grupo social ou sociedade e que desconhecer a história de seu povo é desconhecer a existência de sua vida social, mesmo a mais atual. Para entendermos um grupo social é preciso recuperar a memória e resgatar os momentos históricos que provocaram transformações individuais e coletivas no âmbito de qualquer sociedade.
Amparado nos fundamentos apontados por Pollak e Halbwachs destaco, na composição da memória coletiva estudada, um dos eventos que marcam os documentos oficiais e os relatos registrados: o Massacre da população da antiga comunidade do Engenho Cunhaú. O “Massacre do Cunhaú”, como é mais conhecido, realizado pelos holandeses e índios janduís, e que culminou com a disseminação do sentimento de terror na região, de grande repercussão histórica. As marcas do terror se fizeram notar na época do Massacre, visto que  muitos portugueses que viviam próximos à povoação e, especialmente no território da Paraíba, deixaram suas casas, em pânico, movidos pelo receio de novo ataque como o do Engenho Cunhaú.
Na historiografia regional, mais especificamente em Mariz & Suassuna (1997, p. 95-96), o Massacre também teria tido conotação de intolerância religiosa, visto que, na época, os holandeses eram perseguidos por serem protestantes e teriam partido, após um primeiro momento de aceitação do culto católico durante o governo de Maurício de Nassau, para uma reação aqui no Brasil. Na memória desse Massacre, a fala e a escrita se colocam como instrumentos importantes na constituição da memória, uma vez que os relatos orais e escritos tomam relevância no resgate histórico e se mantêm na memória coletiva da região, remetendo-nos à discussão teórica sobre a constituição da memória, num cruzamento de idéias sobre linguagem, calcadas principalmente nas perplexidades, desencadeadas aqui pelo Massacre. Pollak (1992, p. 2), tratando sobre algumas particularidades desse tipo de memória, adverte-nos que: “além dessas projeções, que podem ocorrer em relação a eventos, lugares e personagens, há também o problema dos vestígios dotados de memória, ou seja, aquilo que fica gravado como data precisa de um acontecimento”.
Percebemos esse traço da memória quando tomamos os relatos sobre a enchente do rio Curimataú, que arrasou a Vila de Cuitezeiras. O senhor Daniel Galvão nos conta que: Na noite do dia 13 de maio de 1901 veio à tragédia e tudo mudou bruscamente. O rio Curimataú destruiu com suas águas o povoado, impondo a necessidade de refundação do lugar que passou a denominar-se Vila Nova de Cuitezeiras.
Antigo Cemitério da Vila de Cuitezeiras

O senhor Jaldemar Nunes também relata com detalhes o dia fatídico da enchente e enfatiza a importância da tragédia para a construção de um novo território, ligando o desenvolvimento atual da cidade a esse fato: então, em 1890 nós se desmembramos de Canguaretama, Cuitezeiras passou a ficar como uma cidade e que a alegria durou pouco porque em 1901 quando em janeiro uma enorme cheia do rio Curimataú destruiu grande parte do lugarejo levando as casas, não houve vítimas, o que fez a população procurar um lugar mais alto que passaria a se chamar Vila Nova. As grandes cheias do Curimataú foram em 1901. A mudança para Pedro Velho significou a conquista de uma nova cidade, já era vizinho do Curimataú, continuou vizinho, mas num lugar mais seguro e que, para nossa surpresa, foi construída essa grande população de Pedro Velho que hoje se encontra ai.
Carlos Alberto Soares também destaca esse momento nas palavras que se seguem: A tranqüilidade e a prosperidade da Vila de Cuitezeiras só foi quebrada na noite do dia 13 de maio de 1901, quando o rio Curimataú recebeu uma grande enchente no seu leito, avançando suas águas destruindo a Vila, sua plantação, seus prédios, matando e carregando o gado. Dos prédios só sobraram as paredes da igreja de Santa Rita de Cássia e o obelisco do túmulo da esposa de Fabrício Maranhão. Não houve nenhuma vítima fatal. A enchente alagou a várzea, subiu até o casario e derrubou ruas mantendo-se em pé apenas a igreja. Conforme relata o senhor Daniel Galvão, eram duas grandes ruas, sendo a principal delas a Rua da Cruz, que ia do velho cruzeiro até o outro lado do Rio Curimataú.
O senhor Jaldemar Nunes complementa afirmando que: Parte da população de Cuitezeiras escapou da enchente dentro da resistente igreja que ficou incólume – hoje existem apenas as ruínas; a cheia levou a metade do lugarejo, contudo, ainda restou vida e muitos moradores continuaram morando naquele local. Esta versão da história, relatada oralmente, é também resgatada, sem citar a data exata, por Cascudo (1968, p. 233), em sua obra “Nomes da Terra” (1968): O Curimataú avançou suas águas e destruiu a Vila, casas, gado, plantios, depósitos. Só não carregou a coragem. Pelo contrário, deu-lhes fé, levando a comunidade a reconstruir seu espaço real – a Vila Nova de Cuitezeiras e ali, entrelaçada às tarefas econômica e religiosa vão expressar o sentimento de religiosidade dos habitantes da Vila.

Túmulo do velho cemitério da Vila de Cuitezeiras

História e Memória: relatos orais e escritos da antiga Vila de Cuitezeiras.
Carlos Alberto Soares de Carvalho nos relata que: Administrava o governo do Estado do Rio Grande do Norte o Dr. Joaquim Xavier da Silveira Júnior. Com a emancipação política, foi eleito a 11 de novembro do ano de 1892, o primeiro Presidente de Intendência do município o senhor João José da Cruz, que se destacou por beneficiar o município com a construção de várias obras públicas.
O senhor Daniel Galvão relata que, cerca de 10 anos após sua fundação como município, Cuitezeiras destacava-se na região por sua ligação com uma atividade agrícola e comercial que se pautava na diversificação. Possuía 20 fazendas de criação de gado, dois engenhos de açúcar, uma área significativa plantada com algodão para exportação e dois descaroçadores. Esse senhor relata ainda que no auge da produção algodoeira – o algodão era uma exigência do capitalismo internacional da época – no início do Regime Republicano, a Vila de Cuitezeiras produzia 300 toneladas do produto por ano. Portanto, dentre as variadas conotações que podemos ter da memória, não importando se é natural ou artificial, oral ou escrita, tradicional ou eletrônica, torna-se relevante o que elas têm a fornecer, a riqueza de recuperar a história de um povo considerando a sua base material e social, tarefa que nos propomos no próximo capítulo com enfoque para a tradição, a cultura popular e a noção de tempo e espaço no contexto social da Vila de Cuitezeiras.

Cemitério da Antiga Vila de Cuitezeiras

Tradição e Memória: relação espaço-tempo e cultura popular no contexto da antiga Vila.
Nesse capítulo, realizo uma discussão sobre o espaço socialmente construído a partir da memória e do que foi discutido anteriormente sobre a importância dos relatos orais de memória na construção da história, tendo em vista relatar o tempo histórico da formação da Vila de Cuitezeiras, procurando recuperar os traços culturais que constituíram a vivência dos habitantes da antiga Vila.

A construção da memória dos narradores.
Parto da compreensão de que a marca da tradição deve ser analisada tanto internamente às narrativas da memória, quanto na relação dessas com a sociedade: essas narrativas se refletem nas próprias regras de composição das várias formas de memória – a memória coletiva, memória individual, dentre outras; em sua existência social. É natural, portanto, que os narradores pareçam especialmente derivar sua competência da tradição memorial, por serem portadores de uma sabedoria antiga e permanente, cuja lembrança surge com naturalidade, entre eles e seu público, a identidade que a memória compartilhada do mesmo patrimônio cultural afirma. Observamos tal fenômeno quando nos deparamos com a tradição memorial do Massacre do Cunhaú e sua relação com a fundação da Vila de Cuitezeiras, contidas nos relatos orais tomados.
Lembrado pela permanência na memória coletiva, o Massacre do Cunhaú, com sua violência material e simbólica, marcou decisivamente na memória coletiva dos grupos sociais que se estabeleceram na área a partir de então e se faz presente até nossos dias, quando ressaltamos a fundação dos municípios de Canguaretama e, posteriormente, de Pedro Velho.
Nesse sentido, em descrições próprias da narrativa baseada na memória do lugar da Vila de Cuitezeiras, os senhores Daniel Galvão e Carlos Alberto Soares de Carvalho remetem ao Massacre do Cunhaú, cada um com sua forma de interpretar o fato: Carlos Alberto Soares: Cerca de onze anos após a conquista do fortim do Cunhaú ocorreu o massacre no engenho do Cunhaú. Fato este ocorrido no dia 16 de julho de 1645, sob o comando de Jacob Rabi com a ajuda dos janduís quando 35 pessoas e o padre André de Soveral foram terrivelmente massacrados no momento em que estava sendo celebrada uma missa na capelinha de Nossa Senhora das Candeias.  Todo o engenho foi destruído.
Sr. Daniel Galvão: Foi um massacre horrível. Morreram muitas pessoas incluindo os religiosos, o que se trata de um grande pecado, pois são pessoas santificadas. Os holandeses e o Jacó Rabi estavam possuídos pelo demônio. Nunca mais o local deixou de ser visto como um lugar santificado.
Por conseguinte, narrar eventos praticamente não depende de materiais, sua permanência está condicionada à manutenção de determinadas relações econômico-sociais, que definem o tempo doméstico disponível e a importância cultural da transmissão oral pessoal.
Esses fatores são determinantes para que aconteçam serões, sessões nas portas das casas ou para o simples contato com os mais velhos. Nesse sentido, pude ver, a partir dos relatos orais, como os narradores do lugar contam a origem de Pedro Velho a partir da fundação da Vila de Cuitezeiras situada às margens do rio Curimataú, área que, em épocas anteriores, havia sido habitado pelos índios Paiaguás.
No contexto da importância dos relatos orais para construção da memória, nos deparamos com as descrições tomadas sobre a fundação da Vila de Cuitezeiras. Trago inicialmente as palavras do senhor Daniel Galvão sobre o evento que descreve: Com o estabelecimento dos Afonso, família tradicional da época, na segunda metade do século XIX surgia o povoado de Cuitezeiras, nome dado em virtude das numerosas árvores de cuités (coités ou cuités – Cresentia cujete) que existiam na área e eram importantes como fornecedoras de cabaços utilizados à época como utensílios domésticos. Ali os Afonso erigiram uma capela em honra de Santa Rita de Cássia, benta em 1862 e em torno da qual se edificaram as primeiras moradias. À época o povoado situava-se no sítio adquirido por Cláudio José da Piedade, provavelmente dos Albuquerque Maranhão, no início do século XIX.

Velho cruzeiro da antiga Vila de Cuitezeiras

O senhor Jaldemar Nunes também comenta sobre a fundação da Vila e se identifica com as palavras do senhor Daniel Galvão ressaltando que: Cuitezeiras foi fundada no ano de 1861, vinculada à cidade de Canguaretama como Carnaúba e Cuité pertencem a Pedro Velho hoje, seu primeiro chefe de intendência foi o senhor José Paulo Tamatanduba do sítio Tamatanduba.
O povoado foi fundado por uma família, os Afonso que ergueram nesse lugar em 1862 a capela de Santa Rita que iniciou as práticas religiosas locais. Em 1890 Cuitezeiras se desmembrou de Canguaretama e após 11 anos o rio Curimataú, com suas cheias, invadiu a cidade levando a metade do lugarejo e seus moradores com medo de novas enchentes procuraram um lugar mais alto para construírem suas moradias. A palavra Cuitezeiras é porque tinha muitos pés de Cuité. Era um  lugarejo que tinha dois descaroçadores de algodão, dois engenhos de açúcar, muitas lojas (vendas e mercearias) e muita gente, aqui onde era a cidade de Pedro Velho era mato, nada existia. Carlos Alberto Soares de Carvalho expõe a sua versão sobre a fundação da Vila de Cuitezeiras nessas breves palavras:
Ao sul, a margem esquerda do rio Curimataú, no sitio pertencente ao senhor Cláudio José da Piedade, durante as primeiras décadas do século XIX fez surgir o povoado de Cuitezeiras, nome este em virtude das inúmeras arvores de cuités. Este povoado foi fundado no ano de 1861 e pertencia judicialmente ao município de Canguaretama. O seu primeiro chefe de intendência foi o senhor José Paulo de Tamatanduba.
Em 1862, foi construída a igreja de Santa Rita de Cássia e o Cruzeiro pelo padre João Medeiros. A referida Santa tornou-se a padroeira do povoado.  Conclui-se, portanto, que relatos como esses, sobre a fundação da Vila de Cuitezeiras, ressaltam a importância atual da narrativa, no contexto da produção cultural da população do lugar, oferecendo-nos muitas referências quanto à recuperação e resgate que pesa, hoje, sobre a possibilidade de sobrevivência do costume de conservar a memória de um lugar.

Ruínas da Igreja de Santa Rita na Antiga Cuitezeiras

A Memória e as evidências orais.
Partindo desse entendimento, registrei algumas informações obtidas através dos depoimentos dos narradores portadores da memória do lugar quando se expressaram sobre a educação na antiga Vila como forma de suplementar a memória discutida ao longo da pesquisa. A educação, como na maioria dos municípios criados antes das mudanças das leis do século passado, que transformaram essa atividade numa obrigação do Estado, era, em sua maioria, dirigida por particulares. Assim, como relata o senhor Daniel Galvão: “A educação ainda não tinha não; a educação era particular, com escola particular, educação pública não tinha, cuidada pelo governo”.
Em relação à forma de relatar do senhor Daniel Galvão, entendo a memória na velhice como uma narrativa de homens e mulheres que já não são mais membros ativos da sociedade, mas que já foram. Isso significa que os velhos têm uma nova função social: lembrar e contar para os mais jovens a sua história, de onde eles vieram, o que fizeram e aprenderam. Na velhice, as pessoas tornam-se a memória da família, do grupo (BOSI, 1994, p. 63).
Portanto, essa tarefa de lembrar, aparentemente difícil para os jovens, se apresenta de forma prazerosa para os velhos, e esse esforço de memória é considerado e encarado pelos historiadores como fonte que de forma alguma pode ser desprezada.

Iconografia do antigo Engenho Cunhaú

A Memória e sua relação com o passado [da Vila de Cuitezeiras].
Estabelecer uma relação da memória com o passado é entender que não existe presente sem influências do passado. Por outro lado, falar de memória e do passado é falar da experiência do vivido, da vivência de ruptura e das construções sociais dos agentes da memória viva. Assim, os narradores portadores da memória do lugar relataram a discriminação racial contra os negros da antiga Vila de Cuitezeiras e a relação com o cemitério local. É fato que brancos e negros pertenciam a grupos sociais distintos antes da libertação dos escravos em 1888. É fato também que eram muitos os mecanismos utilizados para que isso pudesse vigorar.
Uma das estratégias de segregação era o cemitério. Invariavelmente, nas cidades brasileiras, no período tratado, existia o cemitério dos brancos e/ou famosos, o dos poucos conhecidos e, em muitos casos, o dos negros. Desconhecedor dessa repetição histórica, o Senhor Daniel Galvão relata o fato de na Vila de Cuitezeiras existir essa forma de segregação. Vejamos nas suas palavras: No cemitério próximo à igreja só se enterravam os brancos, geralmente pessoas famosas, as outras pessoas, os negros, eram enterradas em outro cemitério, que ficava distante, até nisso tinha preconceito, até no sepultamento tinha preconceito. Apesar da segregação visível, o senhor Daniel Galvão enfatiza que não existia violência de nenhum tipo por causa disso e complementa: Vandalismo, não tinha isso na Cuitezeiras; o que ocorria eram brigas quando o homem fraco se embebedava e ia brigar com os outros, era essa a violência, mas mesmo sem roubos e sem vandalismo havia muitas mortes.
De fato não há registro nos documentos oficiais pesquisados de crimes, assaltos, roubos ou assassinatos, o que nos leva a concluir que a população da Vila de Cuitezeiras era pacata. Diz o senhor Daniel Galvão que todas as festas realizadas eram muito tranqüilas. Segundo ele, “a população participava dos festejos com muita harmonia e sem violência”. Nessa acepção, relatar o passado envolve algum tipo de organização das idéias, a nomeação das vivências e sua integração a outras representações. É o que percebi nos relatos do Carlos Alberto Soares de Carvalho, quando retrata a mudança do território da Vila de Cuitezeiras após a enchente do rio Curimataú e enfatiza a importância de uma primeira consciência urbana na formatação da nova Vila.
Após o drama da enchente a população procurou recomeçar tudo novamente. Mudou-se para um chapadão de terras mais elevadas acima do leito do rio e no decorrer de alguns meses a população foi construindo suas residências e projetando as futuras ruas da nova cidade com proporções e feições modernas. O intendente tenente-coronel Manoel Lopes Teixeira providenciou a distribuição dos lotes de terras que foram distribuídos à população e as casas deveriam ser construídas dentro de um padrão em forma de quadras, isto demonstra que a cidade de Pedro Velho foi uma cidade planejada. A importância dessa estrutura de urbanização fez com que a cidade não tivesse nenhum aglomerado urbano. Ainda sobre o evento, segundo o senhor Daniel Galvão, apenas uma parte da população foi morar no chapadão mais alto. A maioria da população preferiu continuar no núcleo urbano “original” sem a perspectiva de obter um lugar para estabelecer sua nova moradia.
Continuando com os relatos do senhor Daniel Galvão, em 1901, Claudino Martins Delgado, que é considerado o fundador da cidade de Pedro Velho, membro de família tradicional e muito influente no início do século XX no município, construiu uma casa para residência a dois quilômetros de Cuitezeiras. No seu relato original o senhor Daniel Galvão afirma: Não morreu ninguém, não houve vítimas, o socorro saiu de canoas, portanto canoas transportaram o povo para cá para o lugar mais alto que é Pedro Velho, dois quilômetros de lá para cá e começaram a construir aqui. A primeira casa é ali onde é a Telern hoje, sabe onde é? Foi lá a primeira casa a ser construída na Vila Nova e era do fundador da cidade Claudino Martins.
A conclusão a que se chega após toda essa discussão sobre passado e memória é que eventos passados podem se apresentar trágicos ou venturosos. No caso deste estudo em particular, o passado da Vila de Cuitezeiras, aparece no primeiro momento dos relatos como tendo sido trágico, porém, depois mostra-se “venturoso” no sentido de ter proporcionado – a tragédia – transformações importantes para os moradores e conseqüentemente a mudança da comunidade para a Vila Nova de Cuitezeiras.


Sr. Daniel Galvão - narrador portador de memória de Pedro Velho-RN

A memória e sua relação com o presente.
O historiador Câmara Cascudo (1968) também relata sobre a fundação da Vila de Cuitezeiras. Trata-se da versão historiográfica corroborando com as versões orais. O autor afirma que nos idos da terceira década do século XIX, Cláudio José da Piedade adquiriu o sítio de Cuitezeiras, às margens do rio Curimataú. A essa época, Cuitezeiras era pouso obrigatório para comboios carregados de algodão, açúcar e farinha que passavam pela região. Sobre esse papel da Vila de Cuitezeiras, o senhor Jaldemar Nunes afirma: A Vila de Cuitezeiras era um lugarejo pequeno, aonde 80% da renda viria da passagem de pessoas pelo lugarejo, onde compravam nas vendas. Na época o lugarejo era vinculado a Canguaretama (conhecido na época por Penha), o nome vem da existência de cuité e a fundação está vinculada ao transporte das cargas que vinham da Paraíba e iam para este Estado. Em 1890 houve a emancipação. Tratava-se de uma cidade pequena. Tinha umas 30 mercearias, poucas casas, um cemitério. Cascudo (1968) confirma a versão oral do senhor Jaldemar Nunes.
Segundo ele, o lugar, localizado na orla da estrada realenga para o sul, já antes de sua separação do município de Canguaretama, tornara-se ponto de passagem dos comboios de animais carregados com os produtos (açúcar, algodão e farinha) que movimentavam a economia daquela região e complementavam o abastecimento da cidade do Recife (PE). Ao tomar como referência a historiografia de Cascudo (1968) para confirmar os relatos do senhor Jaldemar Nunes, entendo que, embora a experiência dos narradores que lidam com memória do lugar se mostre e pareça estar pronta, é preciso atentar para a subjetividade no tocante à vivência dos habitantes da antiga Vila de Cuitezeiras.



A matéria-prima da memória: as lembranças [da velha Vila].
A matéria-prima da memória é a lembrança. Quando alguém relata suas lembranças, transmite emoções e vivências que podem e devem ser partilhadas, transformando-as em experiências que fogem do esquecimento.  É nessa acepção que se tem a lembrança dos senhores Daniel Galvão, Jaldemar Nunes e Carlos Alberto Soares de Carvalho sobre a economia da Vila de Cuitezeiras.
Segundo relatam esses narradores, a economia era baseada na agricultura e no comércio, destacando-se as vendas, que eram locais de socialização, ponto de encontro e de conversas. Lugar onde se poderia saber dos ‘causos’ passados, sempre na companhia de uma boa dose de aguardente destilada, fato comum no interior e que persiste, apesar do tempo, nas pequenas cidades do Nordeste. Ainda sobre a economia, eles afirmam que, nos idos de 1880, ainda no governo do primeiro Intendente, José Paulo de Tamatanduba (1861-1892), Cuitezeiras tinha uma vida econômica promissora: possuía três descaroçadores de algodão, quatro engenhos de açúcar e inúmeras casas de farinha, além de um grande número de cabeças de gado, arregimentados em cerca de trinta fazendas e criados de forma extensiva.
O senhor Daniel Galvão destaca a economia da Vila de Cuitezeiras com certo prazer e orgulho enfatizando que: A produção era grande, num sabe, a produção agrícola como muito algodão, muita farinha de mandioca, muito milho, a produção era grande, muito fumo, tinha 3 (três) descaroçadores de algodão aqui em Cuitezeiras, três usinas (engenhos), que eram de Joaquim  Azevedo, do outro lado da estrada de ferro, uma outra ali aonde mora dona Chiquita, que era de Alexandre Galvão e   outra era ali onde é o sindicato que era de Pedro Costa, um senhor que tinha aqui. Se produzia muitas frutas, apesar das terras serem quase todas ocupadas pelo algodão e pela cana-de-açúcar, aqui existiam muitos engenhos que produziam açúcar, rapadura, aguardente, tinham vários engenhos aqui no município.
O senhor Jaldemar Nunes também enfatiza a economia da Vila de Cuitezeiras sem se desconectar da realidade atual, fato comum aos que fazem a história oral. Assim ele relata: Os produtos que se destacavam era a cana-de-açúcar, e não era como hoje que vemos essa quantidade de caminhões transportando de Cuitezeiras a cana em grande quantidade, jerimuns, melancias, naquela época não existia isso não. Se as pessoas não plantassem no começo de janeiro, em outra época não daria nada, mas hoje tem irrigação, hoje tem inseticida para combater a praga, tem aquele remédio que você coloca no jerimum, na melancia para eles se desenvolver mais rápido.
Existe Hoje essa grande diferença, para o trabalhador trabalhar melhor. Antigamente você pagava uma renda, hoje paga menos. Os donos da terra, os donos do Cunhaú davam a terra braba, queria apenas que você plantasse uma carreira de cana ou café, não cobrava nada. Hoje para você trabalhar a terra você precisa pagar a renda, o que algumas vezes significa muito.
A Economia passada se dava numa cidade de porte pequeno que não tinha verbas no passado e vivia com renda própria. Existia o algodão, você ia para a boiada [várzea do Curimataú] com seu saquinho apanhava o algodão e ali no Pau Grande tinha um quartinho com uma balança, ali você já pesava o que você colheu e recebia por isso, (já em datas mais recentes, mas o processo apenas se repetia). No mesmo sentido de registrar a importância da Vila de Cuitezeiras como ponto de parada, Carlos Alberto Soares de Carvalho enfatiza: A vila era ponto obrigatório de repouso dos comerciantes que vinham do sertão para o litoral sul do Estado.
Os comerciantes comercializavam os seus produtos como o algodão, açúcar, farinha, sal, tecido, mel, cachaça e outros. A vila se desenvolvia através deste comércio. Com estas atividades econômicas a vila atraia um grande número de habitantes, a sua infra-estrutura contava com uma grande feira semanal, prédios públicos como o da Intendência, mercado público, cemitério, cadeia pública, escola e uma boa urbanização.
O seu maior desenvolvimento se deu com a chegada da estrada de ferro que liga Natal a Nova Cruz, no ano de 1882. Durante o período de 1890 a 1900, Cuitezeiras mantinha toda a sua base econômica voltada para o comércio, produção de algodão, criação de gado e açúcar.

As ruínas da igreja de Santa Rita vista da parte de trás

A memória e sua ligação com a cultura popular.
Que relação existe entre cultura popular e memória? Só podemos resgatar os elementos da cultura popular se procurarmos compreender as mudanças e permanências, num momento histórico, de algum aspecto da cultura. Para isso, é preciso buscar, na memória coletiva, as marcas deixadas pelas lembranças e pelas experiências vividas. Registrando essa tradição, pude perceber a importância da construção de um cruzeiro na formação da nova Vila de Cuitezeiras, pois, no Brasil, até meados da segunda metade do século passado, o Cruzeiro era fator de demarcação para sociedade e tratava-se de uma referência, daí o fato de, na ausência de uma estação ferroviária, tal elemento de religiosidade e representação de poder, servir de lugar de parada dos trens nas pequenas cidades.
O transporte ferroviário, que chegou ao povoado em 1882, segundo o senhor Daniel Galvão, foi fundamental para dinamizar o escoamento dos produtos de Cuitezeiras e demais municípios e povoados da região, bem como para o desenvolvimento urbano da localidade em estudo.
A historiografia oficial, especialmente as obras de autoria de Câmara Cascudo (1968; 1971), confirma a versão do senhor Daniel Galvão quando afirma que a rede ferroviária, que rumava desde setembro de 1881, partindo de São José de Mipibu (RN) com destino a Nova Cruz (RN), chegou a Vila Nova de Cuitezeiras no ano de 1882. Com a chegada da ferrovia à Nova Cruz, no mesmo ano de 1882, e com o aumento da atividade agrícola ligada ao plantio e beneficiamento do algodão, a criação de uma vila urbanizada se fez urgente. Junto ao edifício da Intendência veio o mercado, realizou-se a feira, a capela de Santa Rita foi erguida, junto a ela o cemitério, o que consistia em traços claros de uma urbanização que ia ganhando novas feições com os primeiros alinhamentos de ruas.
É no âmbito dessa relação existente entre cultura e história que o próximo capítulo recupera os aspectos mais importantes da história da Vila de Cuitezeiras. É uma viagem pelos caminhos históricos da memória da antiga Vila a partir da gênese: o engenho Cunhaú, passando pela formação da Vila, a enchente do rio Curimataú, que levou à formação de uma nova Vila (a Vila Nova) até a consolidação da cidade de Pedro Velho.

Interior das ruínas da Igreja de Santa Rita na antiga Cuitezeiras

Do Engenho Cunhaú à Vila Nova de Cuitezeiras.
A Vila de Cuitezeiras – um lugar construído pela memória De início, o lugar que se apresenta como cenário desse estudo se constituiu no passado como o lugar de destaque histórico no município de Pedro Velho. Esse lugar, tido como especial na imaginação dos narradores portadores da memória do lugar, era repleto de mistérios desde o desmembramento, mediante Decreto de 11 de maio de 1890, quando o Governador Dr. Joaquim Xavier da Silveira Júnior separou a Vila do município de Canguaretama, definindo seus limites e elegendo o senhor João José da Cruz o primeiro Presidente da Intendência do município. Esse aspecto da memória coletiva aparece fortemente em depoimentos, conforme posto a seguir pelo senhor Daniel Galvão: É de fato uma terra boa, de grande produtividade onde quase tudo que se planta nasce. Desde criança ando por lá e aqui, na área de Pedro Velho já vi sair de tudo um pouco: feijão, algodão, macaxeira, manga e muitas outras culturas. É uma terra santa, um pedaço abençoado por Deus.
O lugar também se representa na noção de coletividade, sinônimo de um espaço-tempo enraizado fisicamente. Trata-se do espaço onde ocorrem ligações e relações de colaboração, solidariedade, contradição, disputa e conflitos. Esse traço da memória se faz marcante no comportamento dos narradores do lugar, quando relatam o cotidiano das pessoas da antiga Vila e a solidariedade dos habitantes durante a tragédia ocorrida – a enchente do rio Curimataú, que arrasou a Vila.
Nos relatos sobre esse evento, “o lugar pode ser também dos excluídos”. Após a enchente, as pessoas construíram novos espaços geográficos e sociais, consolidando um território denominado de Vila Nova de Cuitezeiras, posteriormente, cidade de Pedro Velho. O espaço socialmente construído da Vila de Cuitezeiras foi recriado com o advento da enchente do rio Curimataú. No lugar da antiga Vila, sobraram apenas as ruínas da Igreja de Santa Rita, o cemitério, parcialmente destruído, que ficava atrás da Igreja e o velho Cruzeiro. Não havendo mais possibilidade de ali continuar a vida, os moradores criaram um novo espaço, o território da Vila Nova de Cuitezeiras, no qual teve início um novo povoamento.
Nas palavras do Senhor Daniel Galvão, o início da ocupação desse espaço – o lugar recriado que originou a cidade de Pedro Velho – revela nomes familiares, eventos e mudanças: As famílias de Claudino Martins, Alexandrino Martins, Joaquim da Luz, Manoel Bezerril, José Galvão de Lima estão entre as primeiras que chegaram e se estabelecerem na nova Vila de Cuitezeiras ainda no início da década de 1860. Essas também foram as primeiras famílias da Vila Nova de Cuitezeiras após a mudança para o chapadão em 1901. Também, ainda no mês de dezembro de 1901, a sede do município foi transferida pelo intendente Manuel Lopes Teixeira para uma área mais elevada localizada nas terras de Fernando Pedrosa. Posteriormente, através da Lei 181 de 04 de setembro de 1902, o presidente da Intendência Joaquim Lopes Teixeira confirmou a transferência da sede da Vila para o novo local e, junto com outras autoridades municipais, oficializou o novo nome da cidade: Vila Nova de Cuitezeiras.
A partir da construção da residência de Claudino Martins Delgado se sucederam as construções e se desenvolveu o comércio, lançando dessa forma os alicerces para a fundação do novo município, inaugurado, religiosamente, em 17 de dezembro de 1901 quando se benzeu o cruzeiro e, politicamente, a 4 de setembro de 1902 quando adotou-se o nome de Vila Nova de Cuitezeiras, sede oficial do município a partir de então. Também no dia 17 a feira na nova Vila era inaugurada.




Sr. Jaldemar Nunes - narrador portador de memória de Pedro Velho-RN
Zela e defende o patrimônio histórico da antiga Vila de Cuitezeiras.

A história e o lugar na memória da cidade.
A partir da discussão teórica anteriormente tratada, chega-se ao entendimento de que a reprodução da memória do lugar, a Vila de Cuitezeiras, faz-se desde a reprodução da memória na gênese do lugar em estudo: o Engenho Cunhaú no século XVII. Foi nessa localidade que teve início a vida social dos que, após o Massacre do Cunhaú, se deslocaram até o lugar da Vila e ali desenvolveram o povoado até a enchente do rio Curimataú, em 1901.
Nessa visão, há a necessidade de relatar brevemente a história do Engenho Cunhaú no contexto histórico do Rio Grande do Norte e como uma forma de entendermos a história da antiga Vila. Com suas terras extremamente propícias ao cultivo da cana-de-açúcar, o Engenho Cunhaú trazia sobre si, à época, o interesse de portugueses e holandeses pela sua posse.
Nesse contexto, torna-se relevante o registro do Massacre do Cunhaú, a partir de Medeiros Filho (apud Mariz & Suassuna, 1997, p. 95-96), como parte do resgate da história da fundação da Vila de Cuitezeiras. O temor se concretizou e algumas famílias que haviam se refugiado na casa-forte existente no sítio de João Navarro, sogro do holandês Joris Garstman, no desaguadouro da Lagoa do Papari, foram em seguida massacrados pelo grupo de Jacob Rabbi, receoso de uma reação dos luso-brasileiros.
Esse episódio abriu caminho para a possibilidade de uma formação territorial de passagem na área de Cuitezeiras, devido à migração de grupos de agricultores temerosos, formação esta que geraria a posterior estruturação da Vila de Cuitezeiras anteriormente revelada nos primeiros capítulos deste trabalho. Portanto, verifica-se que a história da cidade da Vila de Cuitezeiras teve início a partir do que foi produzido e realizado no Engenho Cunhaú, o qual se constituía como foco central do poder na região e tinha o comando de uma família oligárquica tradicional, os Albuquerque Maranhão.
Com os episódios nessa localidade, destacadamente com o Massacre do Cunhaú e a queda da produção, os habitantes se deslocaram para a Vila de Cuitezeiras, lugar de refúgio e de comércio, por ser caminho obrigatório das pessoas ligadas ao transporte de produtos para os grandes centros como Recife e Natal. Com o desenvolvimento comercial da Vila, veio o progresso que, como já observamos, não durou muito, pois essa foi arrasada pela enchente, o que levou a população a reconstruí-la, num chapadão próximo ao local, com a denominação de Vila Nova de Cuitezeiras.

Várzea do rio Curimataú ao fundo.

As lembranças do lugar: a formação da cidade.
Nos relatos paralelos à discussão econômica, constatei que, em 1908, o nome do município foi mudado de Vila Nova de Cuitezeiras para Pedro Velho, sob a influência emocional da morte de Pedro Velho de Albuquerque Maranhão (1856-1907), oligarca-chefe e líder da família de mesmo sobrenome, família que dominava o poder político do Estado a partir do Engenho Cunhaú. Tal denominação permanece até os dias atuais (CASCUDO, 1968).
No contexto histórico de influência oligárquica, o Historiador Carlos Alberto Soares de Carvalho relata o evento da mudança de nome da cidade enfatizando que: Com o falecimento do grande líder republicano o Dr. Pedro Velho de Albuquerque Maranhão em dezembro de 1907, os seus correligionários políticos e o Congresso do Estado (hoje Assembléia Legislativa), em sua homenagem, mudaram o nome de Vila Nova de Cuitezeiras para Pedro Velho. Hoje os mais idosos continuam chamando a cidade de Vila Nova.
Nos relatos do senhor Jaldemar Nunes também aparece o evento da mudança de nome do município: Naquela época, não tinha prefeito, tinha intendente e então o pessoal buscaram construir suas casas num lugar seguro aqui em Pedro Velho e botaram o nome de Vila Nova de Cuitezeiras, que em 1908 passou a ser Pedro Velho em homenagem ao grande republicano Pedro Velho de Albuquerque Maranhão que teria falecido no ano anterior, como seja em 1907 e naquela época veio de trem e ao passar por Pedro Velho o trem descarrilou na Lagoa do Cunhaú, mas foi coisa rápida, não houve problema não.
Essa homenagem era porque ele era membro de uma família ilustre que dominava a política aqui na região e no Estado; foi médico, governador do Estado duas vezes, Senador da República, então era irmão de Augusto Severo aquele que inventou o Pax, aquele avião que caiu na França, era irmão de Fabrício Maranhão, cuja esposa foi enterrada naquele túmulo alto do cemitério da Cuitezeiras, onde se encontra o meu do lado, que fiz para ser sepultado lá. Sobre Cuitezeiras a origem dela é esta.  O senhor Daniel Galvão demonstra insatisfação com relação à mudança de nome, mas, ao mesmo tempo, admite que, a partir de tal evento, o município passou a ter maior desenvolvimento, enfatizando a participação de Fabrício Maranhão, irmão do governador morto, como grande incentivador desse processo.
Assim o senhor Daniel Galvão descreve, a partir da memória, a mudança de nome do lugar: O nome Pedro Velho porque o Sr. Pedro Velho foi o primeiro governador da República no Rio Grande do Norte depois de funcionada a República. Ele era médico, era escritor, jornalista e político, um dos maiores do Rio Grande do Norte e do Brasil aliado de Deodoro na Proclamação da República e aí, em homenagem a ele foi mudado o nome para Pedro Velho, eu não sei para que mudar. Com esse nome, Pedro Velho ficou mais evoluída, apareceu mais esforço. O primeiro a incentivar isso em Pedro Velho foi Fabrício Maranhão. Com esse esforço surgiu o mercado, escolas como a primeira, o Fabrício Maranhão (antes se chamava Pedro Velho), tudo isso depois do nome Pedro Velho.
Conclusivamente, o que se percebe ao contar o passado da cidade de Pedro Velho, a partir da Vila de Cuitezeiras e Vila Nova de Cuitezeiras é que a origem histórica da cidade de Pedro Velho, obtida a partir da memória dos relatos dos narradores do lugar, apresenta-se estruturada com forte influência política, marcadamente pela presença da oligárquica família Albuquerque Maranhão, que participou ativamente da construção da história do município marcando o lugar e permanecendo na memória.

Antiga capela do Engenho Cunhaú

A memória e o novo lugar: a cidade de Pedro Velho.
O contexto da formação da cidade de Pedro Velho remonta ao novo lugar construído socialmente após a enchente do rio Curimataú e à procura por um chapadão elevado, evento discutido nos itens anteriores, tendo em vista construir uma nova sociedade. Nessa discussão sobre o lugar, a memória revela a história da cidade de Pedro Velho, iniciada no Engenho Cunhaú, em seguida transformada em Vila de Cuitezeiras, e, depois da enchente do Curimataú, na Vila Nova de Cuitezeiras. Agora, havemos de resgatar a formação da cidade de Pedro Velho, com enfoque para o espaço urbano que se constituiu.
Esse resgate se dará através dos narradores do lugar, fazendo relações teóricas com algumas categorias como: espaço social, cidade e urbanização. A Vila Nova de Cuitezeiras crescia a partir do novo Cruzeiro – o Cruzeiro da Rua da Linha – ao longo da linha ferroviária que liga Natal/RN a Recife/PE, atualmente desativada. Nesse percurso direcionado pela linha férrea encontrava-se a estação ferroviária.
Nesse sentido, a sagração a São Francisco como padroeiro da cidade de Pedro Velho, parece representar uma relação de cidadania e de crença que dá forma às ações das pessoas. A ação conjunta dos cidadãos ao reconstruir a cidade tem um significado social e religioso, mas indica também uma faceta cultural, a superstição.
Nos dias atuais, tradicionalmente celebra-se a festa religiosa do Padroeiro, São Francisco de Assis, a 4 de outubro. Antes desse santo se fixar nas representações coletivas dos habitantes de Vila Nova, os devotos ainda admiravam e veneravam Santa Rita, padroeira da antiga Vila.
Através das lembranças de alguns narradores do lugar pude recuperar aspectos da origem da Vila de Cuitezeiras tendo início nas terras do Engenho Cunhaú e nas marcas das relações sociais desenvolvidas nessa localidade que possibilitaram a ocupação de um novo espaço social construído: a Vila Nova de Cuitezeiras que mais tarde se consolidaria como Cidade de Pedro Velho.
Ao resgatar a gênese da Vila de Cuitezeiras, a qual remonta aos tempos do engenho Cunhaú percebi uma articulação político-religiosa entre católicos e protestantes que tinha como “pano de fundo” o controle e o interesse econômico da produção dos engenhos e das terras da região. Em conseqüência dessa disputa ocorreu o Massacre dos devotos católicos na Capela do Engenho Cunhaú. Sem dúvida, um fato histórico que marcou a vida política e religiosa de todos os integrantes do engenho. O líder holandês Jacob Rabi influenciando os índios Janduís fez com que eles invadissem a capelinha de Nossa Senhora das Candeias e assassinassem 35 pessoas e o padre André Soveral.



Sr. João Fonseca - narrador portador de memória de Pedro Velho-RN
Nessa perspectiva, os fatos marcantes ocorridos na Vila de Cuitezeiras e na Vila Nova de Cuitezeiras, bem como as atividades econômicas e os acontecimentos religiosos, políticos, sociais e naturais fizeram parte da construção dos novos espaços sociais (territórios) dos moradores de Pedro Velho. Finalmente, concluí que a história de constituição esse lugar investigado, embora envolva diferentes denominações e contextos históricos diversos, é única; refere-se às terras do engenho Cunhaú e à sociedade que ali habita que somente devido às transformações sociais, políticas, religiosas e econômicas saíram desse lugar em busca de outro espaço, de preferência onde a vida ativa – econômica pudesse se desenvolver. Foi na Vila de Cuitezeiras que encontraram esse novo espaço.
O que atraiu a sociedade local a esse lugar foi certamente, a busca por um lugar seguro num período de massacres e perseguições político-religiosas e a terra fértil visto que até hoje ali se encontra uma várzea considerada de grande produção agrícola.
Enfim, sabemos que nos dias atuais, a memória é cada vez mais fragmentária e que o historiador tem um importante papel no resgate e registro da mesma, foi com esse espírito que me lancei em busca dessa construção histórica que também é minha!
A Dissertação completa encontra-se no site: www.geociencias.ufpb.br/posgrad/dissertacoes.html


Por Cledenilson Moreira

Comentários

  1. Parabéns ao professor Marcos Fonseca pelo excelente trabalho de resgate histórico de Pedro Velho e região. Vivemos na era da informação e do conhecimento, por isso, parabenizo também ao professor Cledenilson por criar e manter um blog que nos permite ampliar nossa capacidade de aprendizagem.

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